Caminhos da genômica: quem pode trilhá-los?
por Tayná Fiuza

Em agosto de 2020, doze pesquisadores publicaram um artigo de opinião apontando os caminhos os quais as áreas de genômica e genética devem trilhar pela próxima década - de acordo com a área de expertise de cada um. Foram seis mulheres e seis homens que, a convite da revista Nature, delinearam as grandes oportunidades dentro da área e elencaram os desafios conhecidos a serem superados para que algumas limitações sejam ultrapassadas.

Os quatro primeiros pesquisadores (Amy McGuire, Stacey Gabriel, Sarah Tishkoff e Ambroise Wonkam) citam pontos importantíssimos como o aumento da diversidade nos dados genômicos gerados em todo o mundo - tanto relacionado às amostras de indivíduos analisados, às equipes de cientistas que coletaram as amostras, quanto, e principalmente, na distribuição dos frutos gerados por grandes estudos genômicos (tais como tecnologias de prevenção, detecção precoce, diagnóstico e tratamento de doenças). Existe aí uma ponte para um trabalho publicado em 2002, também na Nature, em que cientistas apontaram dez biotecnologias para a melhoria da saúde em países desenvolvidos. A justificativa desse trabalho surge do cálculo de que 90% do dinheiro investido em saúde no mundo fomentava pesquisas voltadas à doenças de 10% da população. Existe então uma urgência antiga para que os esforços da comunidade científica - seja da pesquisa básica de fronteira ou de aplicações cotidianas - se voltem para problemas frequentes e solucionáveis que acometem a maior parte da espécie humana.

Essa maior diversidade necessária nas pesquisas genômicas de hoje e dos próximos anos é encarada dentro de diferentes perspectivas e ressalvas pelos quatro pesquisadores. Amy McGuire foca nos pontos citados acima e Stacey Gabriel enfatiza a importância na redução dos valores para o sequenciamento de genomas e exomas. Sarah Tishkoff aponta a inacurácia a que estudos de variabilidade e evolução em escala global estão sujeitos quando não possuem dados para algumas populações com grande número de indivíduos ou ainda aquelas situadas em regiões geográficas chave nas migrações humanas. Pegando este mote, Ambroise Wonkam lembra do continente Africano como centro de diversidade humana e como as migrações sujeitaram diferentes populações a grandes gargalos genéticos.

Os três pesquisadores seguintes (Aravinda Chakravarti, Eileen Furlong e Barbara Treutlein) têm direcionamentos que, inevitavelmente, interagem com a necessidade primordial de uma maior variedade nos dados disponíveis apontada pelos pesquisadores anteriores. Aravinda Chakravarti foca na decodificação de fenótipos multifatoriais e da necessidade de novos métodos e perspectivas para que esta área possa avançar. Eileen Furlong e Barbara Treutlein trazem propostas que se sobrepõem. A primeira aborda enhancers e o estudo do desenvolvimento embrionário, e a segunda explora em maior detalhe as possibilidades do emprego das ômicas de células únicas, abordagem que surge para facilitar o estudo de, dentre outros processos, destino celular.

Os caminhos e sub-áreas apontados são de grande interesse tecnológico e conceitual, e, tanto pelo enfoque, quanto pela distância temporal, contrastam grandemente com os pontos citados há 18 anos no estudo sobre tecnologias para países em desenvolvimento. Nele, os pesquisadores recrutados deveriam propor tecnologias pensando em seis critérios: seu impacto - a diferença causada pela presença dessa tecnologia no contexto da saúde; sua adequação - quão acessível, robusta, adaptável (para diferentes realidades estruturais) e aceitável (social, cultural e politicamente) é a tecnologia; , seu peso - se a tecnologia se volta para os problemas saúde mais urgentes; sua executabilidade - se será possível desenvolver e aplicar dentro de cinco a dez anos; a lacuna de conhecimento - se o uso da tecnologia gerará novos conhecimentos para melhorar a saúde de todos; e seus benefícios indiretos - se a tecnologia causará impactos positivos no meio-ambiente e geração de renda de modo a retroalimentar os benefícios na área da saúde.

Utilizar estes critérios ao avaliar outras tecnologias - com as adaptações necessárias - parece um bom exercício para pesquisadores que buscam realizar contribuições significativas na qualidade de vida da maior parte das pessoas. Os próximos caminhos citados no trabalho contemporâneo são: o estudo do epigenoma como fronteira do conhecimento em genética e genômica, citado por Alexander Meissner, e a mudança de paradigma no estudo de RNAs longos não-codificantes (lncRNAs), de acordo com Howard Chang. Segundo ele, é chegado o momento de desenhar e fabricar lncRNAs com os conceitos aprendidos nos últimos anos. Os impactos da aplicação de pesquisas na área da saúde são claros, mas a adequação e executabilidade deles pode estar limitada a países desenvolvidos ou mesmo a uma parcela privilegiada dentro dessas nações.

Algo similar pode ser concluído com respeito às tecnologias mencionadas pelos últimos dois pesquisadores que se pronunciaram no referido estudo. Ambos apontam o emprego da genética e genômica para a geração de conhecimento personalizado a nível de consultório médico nos próximos anos. Eran Segal menciona a importância de aplicações da genômica para além da oncologia e de doenças monogênicas, como no acompanhamento temporal dos dados ômicos dos pacientes. Jin-Soo Kim foca na edição gênica com CRISPR-Cas para o tratamento de condições genéticas e não genéticas na clínica, tão logo sistemas disponíveis possuam maior eficiência de entrega, acurácia no alvo/ausência de modificações fora do alvo e menor imunogenicidade. Essas propostas se acordam de maneira elegante ao critério da lacuna de conhecimento, ao permitir que novos dados e conhecimentos sejam gerados retroalimentando a cadeia de produção de saberes. Contudo, o fomento e a regulação de estudos e serviços gerados nesse sentido definirão quais pacientes terão acesso aos tratamentos desenvolvidos e sob quais condições.

Existe grande mérito na expansão das fronteiras do conhecimento humano, contudo, não podemos perder de vista os benefícios que a aplicação direta e indireta da tecnologia desenvolvida a partir de tais conhecimentos traz para quem a recebe, para a sociedade como um sistema interconectado e para a comunidade científica, que pode iterar sua produção a partir dos impactos gerados. Há quase 140 anos, lorde Kelvin colocava as aplicações práticas como vida e alma da ciência e chamava a atenção daqueles que encaravam tais aplicações com arrogância. Entendemos o conhecimento produzido como um híbrido de fim em si mesmo e do meio para beneficiar nosso sistema, gerando mais conhecimento para todos.

Glossário:

Sistemas CRISPR-Cas: sistema de defesa antiviral adaptativa presente em arqueas e bactérias. Baseia-se em grupos de pequenas repetições palindrômicas regularmente espaçadas (CRISPR) e proteínas associadas à estas CRISPR (Cas). A descoberta desse sistema por Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier revolucionou estudos de edição gênica e rendeu às pesquisadoras o prêmio Nobel de química em 2020.

Exomas: porção do genoma correspondente aos exons de um organismo ou célula. Exons são as regiões de um transcrito após a remoção dos introns; os exons são unidos formando o RNA mensageiro ou outros tipos de RNA.

Fenótipos multifatoriais: fenótipos gerados pelo efeito combinado de diferentes genes e fatores ambientais.

Ômicos: referente a dados gerados em grande quantidade a partir de tecnologias de sequenciamento de DNAs, RNAs, proteínas ou da identificação de lipídios, carboidratos, metabólitos secundários e outros.

Referências:

The road ahead in genetics and genomics | Nature Reviews Genetics | https://www.nature.com/articles/s41576-020-0272-6

Top ten biotechnologies for improving health in developing countries | Nature Genetics | https://www.nature.com/articles/ng1002-229

Popular lectures and addresses : Kelvin, William Thomson, Baron, 1824-1907 : Free Download, Borrow, and Streaming : Internet Archive | https://archive.org/details/popularlecturesa01kelvuoft/page/78/mode/2up