Profa. Dra. Selma Maria Bezerra Jerônimo
por Renata Cavalcante

Selma Maria Bezerra Jerônimo é Médica e Bióloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mestre e doutora em Biologia Molecular pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e fez pós-doutorado em doenças infecciosas pela Universidade da Virgínia. Tem experiência com o estudo de doenças infecciosas e parasitárias. Atualmente, é diretora do Instituto de Medicina Tropical (IMT/UFRN) e professora titular do departamento de Bioquímica da UFRN.

Como nossa primeira pergunta, gostaríamos que a senhora se apresentasse para os nossos leitores, contando um pouco sobre a sua carreira profissional e quais são suas linhas de atuação.

Olá a todos os leitores! Meu nome é Selma Maria Bezerra Jerônimo. Eu sou Norte-rio-grandense, nascida em Serra Negra do Norte. Fui aluna da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursei Ciências Biológicas e subsequentemente eu cursei Medicina também na instituição. Fiz minha pós-graduação (mestrado e doutorado) em Biologia Molecular pela Unifesp, e depois um pós-doc em doenças infecciosas na Universidade da Virgínia. Retornei para o Brasil entre 94/95 onde desde então, sou docente alocada no departamento de Bioquímica da UFRN.

No meu doutorado, trabalhei buscando compreender como modificações na biossíntese de proteoglicanos* estaria associado com alguns tipos tumorais. Mas, subsequentemente eu mudei a minha área de interesse e me concentrei em doenças infecciosas. Inicialmente explorando uma epidemia de leishmaniose visceral, que fez parte do processo de urbanização de doenças endêmicas no Brasil, que no passado eram de incidência rural. Então, parte da minha carreira foi centrada em estudar essa patologia e seus aspectos epidemiológicos, imunológicos e a susceptibilidade genética do hospedeiro a desenvolver a doença.

Nesse ínterim, nós não tínhamos quase nada em termos laboratoriais, mas foi com esses primeiros artigos que nós publicamos sobre leishmaniose que conseguimos uma parceria com o National Institute of Health, e isso foi determinante, pois fez com que ocorresse o financiamento e estruturação do nosso laboratório para estudos em imunologia e genética. E assim nós conseguimos ao longo do tempo responder algumas questões de doenças endêmicas no Rio Grande do Norte. Compreender os vários espectros da leishmaniose nos levou à segunda doença que nós passamos a estudar, que foi a hanseníase, uma doença também espectral, e que tem comportamentos e formas clínicas totalmente distintos.

Então a formação dessa infraestrutura laboratorial e treinamento de pessoal, é o que nos permitiu a estudar outras epidemias, como os surtos de Zika e Chikungunya. E mais recentemente, com a colaboração de vários pesquisadores do Centro de Biociências e do Centro de Ciências da Saúde, também foi possível estruturar o laboratório, o que fizemos rapidamente, para ser um laboratório clínico para responder a atual pandemia do Sars-CoV-2*. Basicamente, a ideia do nosso grupo é que tenhamos uma estrutura para responder a endemias e epidemias, é isso que nós estamos fazendo agora com relação ao Sars-CoV-2.

Como o trabalho de seu grupo de pesquisa mudou depois que se iniciou a pandemia de Sars-CoV-2?

Na verdade, não houve só mudanças em meu grupo de pesquisa, mas sim um esforço coletivo da UFRN para poder dar o suporte que é necessário para o enfrentamento dessa epidemia. Aqui no IMT a principal mudança é que diminuímos as nossas análises laboratoriais relacionadas a outras doenças e estamos concentrando todos os nossos esforços para montar uma estrutura de diagnóstico laboratorial molecular para Sars-CoV-2. Também estamos estabelecendo um diagnóstico sorológico, adquirimos antígenos de uma companhia americana para montar um protocolo ELISA*. Estamos fazendo isso devido aos exames sorológicos ainda estarem em fases muito iniciais e estamos buscando contribuir com esses avanços.

Como o IMT está auxiliando no combate ao Covid-19 no estado do Rio Grande do Norte?

Logo em meados de março, a equipe liderada por Dra. Eliana Tomaz e Dra. Iara Marques, juntamente com outros profissionais e estudantes da área da saúde montaram um teleatendimento para orientação da população sobre o Covid-19 e desde então mais de 1.000 pessoas já buscaram informações e foram orientadas. Então, esse é um suporte importante porque vai desde o aspecto da dúvida individual de quem busca o atendimento, como também aspectos como a gravidade da doença. Em torno de 20% das pessoas que nós atendemos eram pessoas que apresentavam uma certa gravidade e que precisavam ser direcionadas ao hospital. Então os outros 80% foram pessoas que graças ao nosso direcionamento evitaram de ir ao hospital, porque elas receberam conforto e orientação pelo telefone. Isso é um dado importante, pois são 800 pessoas, mais as pessoas que são relacionadas a elas, que não foram ocupar o hospital.

O segundo ponto em que o IMT vem auxiliando é no diagnóstico molecular de Sars-CoV-2 no estado do RN. Nós já fizemos em colaboração com o LACEN/RN (Laboratório Central de Saúde Pública do Rio Grande do Norte) mais de 2.000 testes. Onde inicialmente estávamos recebendo o RNA viral já extraído e estávamos atuando na etapa de amplificação. Atualmente, nós do IMT já realizamos todas as etapas de extração e amplificação do material genético do vírus.

Quais são os tipos de testes que estão sendo feitos pelo IMT e quais as suas metodologias?

Nós temos dois tipos de teste básicos, o teste molecular e o sorológico. O teste molecular visa a detecção do material genético do Sars-CoV-2 (RNA), onde se utiliza diversos marcadores para essa identificação. Em resumo, o teste molecular possui 3 etapas: a primeira fase nós chamamos de pré-analítica, que é a coleta de material. Essa coleta de material, que se dá pelo swab nasal, é feita nas unidades de referência. Os hospitais recebem o kit de coleta que contém o swab e o meio de transporte viral. O segundo ponto é a extração do ácido nucleico, no caso do Sars-CoV-2, se extrai o RNA total. E a terceira etapa é onde se faz a amplificação desse material genético, onde fazemos uma transcrição reversa seguida de uma amplificação por PCR (RT-PCR*). O cuidado nessas 3 fases são muito importantes para a qualidade do diagnóstico.

E o teste sorológico é utilizado para detectar antígenos virais, geralmente presentes no capsídeo* . Neste teste é feito basicamente um teste rápido ELISA e uma quimioluminescência* . Os testes rápidos ainda não são tão bons e existe uma certa reserva em relação a eles. Não são todos os laboratórios do país que fazem esse tipo de teste. E conforme eu comentei anteriormente, nós do IMT estamos tentando implementar uma metodologia ELISA a nível de pesquisa. A nível de diagnóstico nós estamos trabalhando apenas com o teste molecular.

Quantos testes estão sendo feitos pelo IMT por dia atualmente?

Atualmente estamos realizando uma média de 120 testes diários, 6 vezes por semana, totalizando uma média de 700 testes semanais. E quando o extrator de RNA que adquirimos chegar, a nossa expectativa é que o número de testes diários suba para 300 testes. Até hoje, 18.05.2020, toda a nossa etapa de extração do material genético ainda é feita de forma manual.

O número de testes realizados em cada país ainda é uma questão que causa uma certa divergência entre a população. Então, gostaríamos de perguntar o porquê de se testar e qual a importância de testar mais e mais pessoas.

O primeiro ponto é que com o teste nós temos o diagnóstico diferencial, só porque o paciente apresenta sintomas de Sars-CoV-2 não significa que de fato ele irá testar positivo para a patologia. Um outro ponto importante é que se o paciente apresentar resultado positivo para Sars-CoV-2 significa que ele é um agente transmissor do vírus. Hoje sabemos que o Sars-CoV-2 é um vírus que tem uma transmissibilidade elevada, e por esse motivo o paciente tem que ficar isolado a partir do momento da confirmação desse diagnóstico, a fim de evitar a propagação e contaminação de um maior número de pessoas. O terceiro ponto é que é fundamental para as unidades sanitárias possuírem esse número de infectados para que as agências governamentais possam pensar em estratégias para lidar com essa doença que tem uma alta transmissibilidade.

Por que o Brasil não consegue testar mais gente?

No início a principal causa era a falta de insumos, já que a indústria foi pega despreparada para essa situação de pandemia mundial. Para dar uma dimensão do problema da falta de insumos, os meses de março e abril foram períodos super difíceis para se conseguir itens básicos como ponteira, placa de plástico, entre outros materiais. Então o primeiro gargalo foi a produção de insumos e a grande procura por esses materiais em todo o mundo. E esse não foi um problema apenas do Brasil, foi também um desafio encontrado nos Estados Unidos e na Europa.

Outro aspecto que temos que levar em consideração é o tamanho populacional do Brasil, se comparado com países europeus, por exemplo. Atualmente, as universidades federais estão auxiliando no diagnóstico, o que já faz com que o Brasil consiga aumentar as suas taxas de testagem. Mas, ainda possuímos fatores limitantes. Por exemplo, não são todos os locais em que você possui um extrator de RNA. E para dar uma noção para quem nunca trabalhou com Biologia Molecular, a etapa de extração de RNA feita manualmente dura em torno de 2h. Mas só ter o extrator não vai mudar o cenário, pois também é necessário toda uma organização pessoal. Existe todo um processo antes de se testar, durante o teste e pós. Não é um processo simples, temos uma complexidade enorme, desde a organização dos municípios, até chegar na parte final que seria realizar o teste. E realizar o teste é uma parte do problema. Apesar dessas limitações, a universidade conseguiu recurso com o Ministério da Educação e dentro dos próximos 6 meses pretendemos realizar em torno de 100 mil testes. E essa é uma contribuição da Universidade para a sociedade.

Quais são os tipos de dados que estão sendo gerados com a execução desses testes e como a Bioinformática poderia auxiliar na análise desses dados que estão sendo gerados em bancada?

Basicamente, estamos gerando dados epidemiológicos. E não somente a Bioinformática pode trabalhar com esses dados, mas a estatística como um todo. Esses dois campos vão auxiliar no cálculo do R0, determinar estratégias de controle e entender a magnitude dessa pandemia. Outro aspecto é começar a entender como está funcionando a nossa resposta imune, e entendendo os motivos pelos quais existem pessoas que desenvolvem as diferentes formas de estágio da doença (leve, moderada e forte). Estudar esse aspecto é importante porque aparentemente essa resposta é um aspecto do hospedeiro e estudos envolvendo a Bioinformática serão determinantes para se entender biomarcadores de gravidade ou de proteção.

E por fim, qual o seu recado, a sua reflexão para quem está lendo essa entrevista?

Eu acredito que essa pandemia vai obrigatoriamente mudar a forma como nós vivíamos. Ela vai mudar a forma como nós pensávamos os valores, e nos questionar a forma como nós usávamos o nosso tempo. Além de aspectos importantes na nossa sociedade como a solidariedade, e como a ciência pode auxiliar nesse processo. Essa pandemia levantou vários questionamentos da nossa vida em sociedade por ser uma questão muito complexa. Um aspecto específico do Brasil é a desproporção em termos de qualidade de vida, em nos mostrar como a classe menos favorecida fica ainda mais vulnerável numa situação como essa. Quando basicamente essas pessoas não têm como fazer um distanciamento social que seria o mínimo para garantir a segurança dessas pessoas.

E que com o conhecimento que nós temos, nós poderíamos e deveríamos fazer melhor. Os próximos 4/5 meses serão uma luta para manter um equilíbrio, mas depois vamos ter que ter uma agenda para pensar no país de forma melhor. Não é possível continuar fazendo como nós fazíamos no passado. Obviamente teremos um grande problema para enfrentar pós-pandemia, uma crise econômica enorme, que nos trará um atraso muito grande, mas o atraso maior é o da intolerância. E é nesse ponto que precisamos repensar a forma como nós vivemos para podermos construir, verdadeiramente, uma sociedade mais adequada, mais justa e igualitária.

Glossário:

  • Proteoglicanos: são moléculas compostas que formam a estrutura das células e se encontram unidas à membrana das células e à matriz extracelular. Tem diversas funções no tecido conjuntivo (pele, cartilagem e anexos).
  • Sars-CoV-2: do inglês, Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2.
  • ELISA: do inglês, Enzyme-Linked Immunosorbent Assay, é um teste imunoenzimático que permite a detecção de anticorpos específicos (por exemplo, no plasma sanguíneo). Neste teste, é necessário fixar o antígeno a uma superfície sólida, e então ligar ao antígeno um anticorpo que por sua vez é ligado a um marcador enzimático.
  • RT-PCR: do inglês, reverse transcription polymerase chain reaction. A reação em cadeia da polimerase com transcriptase reversa é uma técnica de Biologia Molecular muito utilizada para diagnósticos. A técnica consiste no uso da enzima transcriptase reversa, para transcrever o RNA viral em DNA complementar (cDNA), e assim realizar a amplificação desse material. Desta forma a técnica é utilizada para medir a quantidade de um RNA específico presente em uma amostra.
  • Capsídeo: trata-se de uma estrutura proteica fundamental dos vírus, que possui como função proteger o material genético viral e facilitar a invasão em uma célula hospedeira.
  • Quimioluminescência: trata-se de um tipo de reação química que gera energia luminosa, a qual pode ser medida. Essa técnica é muito utilizado em imunoensaios.