Com quantas mutações se faz uma nova espécie?
por Tayná Fiuza

Em d'A Origem das Espécies, Charles Darwin apresentou a revolucionária ideia de que uma seleção natural estaria por trás das mudanças graduais em populações e que de tantas mudanças, novas espécies poderiam surgir ao longo do tempo. Mas, para começo de conversa, o que é uma espécie? Uma definição comumente aceita é a de que dois indivíduos pertencem a distintas espécies se, entre eles, há barreiras reprodutivas para a geração de um novo indivíduo com capacidade de reprodução. Ou seja, não conseguem I) gerar um zigoto, II) gerar um zigoto que se desenvolva ou III) gerar um indivíduo capaz de deixar descendentes.

Barreiras Pre-zigoticas Figura 1: Barreiras pré-zigóticas são caracterizadas principalmente entre os seguintes tipos: Temporal, como no caso de sapos que dividem um habitat, mas se reproduzem em estações diferentes; ecológica: Como no caso de animais que ocupam nichos ecológicos distintos; comportamental, em que diferentes hábitos como o tipo de canto provocam uma seleção sexual dentro de populações; e mecânica, em que diferenças físicas impedem a copulação ou polinização.

Conforme apontado anteriormente, sabemos que esse processo de seleção natural é gradual e os diferentes tipos de entraves reprodutivos encontrados entre indivíduos de espécies distintas pode ser um indicativo do quão avançadas no processo de especiação duas espécies estão uma em relação a outra. Um dos eventos que pode culminar no impedimento reprodutivo entre espécies é o isolamento geográfico, num processo chamado especiação alopátrica. Contudo, diversos casos bem estudados de especiação ocorreram entre populações cujas distribuições geográficas se interseccionam (especiação parapátrica) ou se sobrepõem quase que totalmente (especiação simpátrica). Então, como descendentes de indivíduos de uma mesma espécie, coabitando o mesmo território, acabam por divergir em duas ou mais espécies?

Especiação de Tipos

Figura 2: Diferentes processos de especiação, indo da alopátrica em que há separação total de duas populações e posterior isolamento reprodutivo à simpátrica, em que o isolamento reprodutivo ocorre sem isolamento geográfico. Entre estes extremos há as especiações peripátricas, em que um ou mais nichos surgem em uma região periférica; e as especiações parapátricas, com novos nichos ecológicos que se sobrepõem aos originais.

Modelos teóricos criados e descritos ao longo dos anos apontam que para especiações simpátricas ocorrerem as mutações devem surgir em poucos genes. Isso porque o efeito de pressões seletivas em poucos genes - o qual levaria a diferenças entre dois grupos e posterior especiação - seria capaz de sobrepujar o efeito do fluxo gênico - o qual causa uma homogeneização entre dois grupos. Apesar disso, estudos empíricos apontaram um grande número de regiões gênicas envolvidas no processo de especiação de plantas e animais - com ou sem fluxo gênico entre populações. Qual dessas análises está correta?

Divergência de modelo

Figura 3: Modelos e simulações computacionais indicam que em situações com alto fluxo gênico a especiação é levada adiante com mais rapidez quando um ou poucos genes com efeito maior na adaptabilidade são selecionados. Quando essa intensidade da adaptabilidade total é distribuída em um número maior de genes, a especiação não ocorre tão facilmente.

Ambas as ideias estão corretas, segundo os pesquisadores Patrik Nosil, Jeffrey L. Feder e Zachariah Gompert, em publicação na Science. Para conseguir unir as duas visões eles apontam para a observação das populações e suas frequências alélicas no plano espacial pela teoria desenvolvida por Nick Barton e colaboradores na década de 80. Ao entender que nenhum gene é uma ilha e que variações em distintas regiões gênicas podem estar associadas podemos entender que pressões seletivas em um gene podem ser "transmitidas" para regiões gênicas relacionadas. No fim das contas, esse casamento entre regiões promove uma seleção total muito mais intensa que uma seleção única e solitária.

Na natureza o fluxo gênico não ocorre de maneira controlada e nem permanece constante. Existem momentos de menor fluxo, em que variações genéticas e estruturais intra específicas podem se acumular, e momentos de maior fluxo, em que alguns genes podem fazer um importante retorno. Ainda há muito espaço para melhor compreensão dos mecanismos por trás do chamado genomic coupling (as associações entre características ou loci envolvidos no isolamento reprodutivo) na especiação. Um ponto importante é que diversos estudos da área apontam correlações e não tem muitas replicatas. Há uma necessidade de estudos que apontem efeitos causais entre regiões diferenciadas, "coupling" e o isolamento reprodutivo. Estudos moleculares com DNA ancestral, por exemplo, podem apontar se e como aconteceram divergências entre sequências em pleno período de fluxo gênico. Finalmente, voltando às mudanças graduais apontadas por Darwin, precisamos então apontar como esses efeitos combinados de genes e fenótipos deixam de descrever polimorfismos entre populações e se tornam diferenças genômicas entre espécies distintas.


Glossário

Fluxo gênico: O fluxo de genes entre populações pelo cruzamento de indivíduos. É o que resulta em determinada semelhança genética dentro e entre populações cujos indivíduos interagem e geram descendentes viáveis.

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Referências

How many genetic changes create new species?

https://science.sciencemag.org/content/371/6531/777

Speciation: The Origin of New Species

https://www.nature.com/scitable/knowledge/library/speciation-the-origin-of-new-species-26230527/